Sobre angústias, Huxley, Wilde e pessoas que partem logo que as encontramos

Tenho me questionado acerca das coisas que faço. Tipo ler, ouvir música, assistir filmes, estudar... Todas elas me parecem, agora, não fazer muito sentido além do prazer que me proporcionam.
Pergunto-me o quanto essas coisas contribuem de fato para me constituir enquanto um indivíduo pertencente a uma sociedade. Em outras palavras, o quanto essas atividades realmente importam.
Quer dizer, é certo que elas importam muito para mim. Elas me proporcionam experiências agradáveis, aumentam meu conhecimento, essas coisas. Mas e aí? Eu sinto como se eu não devolvesse nada para o mundo, retendo tudo apenas para mim. Isso me parece um tanto egoísta, e eu não me sinto bem com isso. Quer dizer, o mundo ao meu redor não existe apenas para eu saboreá-lo, não é? Ainda mais se eu apenas experimentá-lo e me sentir satisfeito com isso, sem uma retribuição.
Aí está o meu problema no momento: que tipo de retribuição eu posso dar para o mundo? Imagino que não preciso necessariamente retribuir oferecendo aquilo que eu recebo. Posso retribuir com algo que só eu posso dar. Mas eu não sei o que é isso. Opinião? Minha versão, minha interpretação sobre o que vejo, o que sinto, o que experiencio? Será que alguém realmente está interessado nisso? E fora isso, o que mais eu poderia oferecer? A verdade é que nunca fiz muitas coisas na vida além dessas que citei, então não sei do que sou capaz, não sei o que tenho a oferecer. E raramente eu me arrisco a fazer algo sobre o qual nada entenda. Eu acho que servir as outras pessoas com o próprio trabalho é uma grande responsabilidade, pois elas esperam que você cumpra bem o seu papel, então não me parece certo fazer algo, recebendo dinheiro em troca, que não tenho certeza se faço bem. Por outro lado, se eu não arrisco aprender algo novo, nunca farei nada, e então nunca poderei oferecer nada. O que me leva a identificar mais um aspecto egoísta: o não arriscar é, ao mesmo tempo, não colocar-se à disposição para auxiliar os outros no que for possível, na medida do que se pode fazer, ainda que a princípio seja pouco. O temor do fracasso pessoal é maior que a disposição de tentar fazer o que se pode. A preguiça, tenho de admitir, é outro fator importante nessa equação. Ao vislumbrar o esforço necessário para enfrentar uma situação desconhecida tendo a responsabilidade de dever beneficiar alguém, correndo o risco de prejudicá-lo caso o serviço seja mal feito, sinto-me inclinado a nem começar a tarefa, antevendo uma tragédia.
Mas todas essas coisas, é possível notar, são frutos de um defeito maior: a de pensar demais antes de fazer qualquer coisa. Se leio um livro e sinto vontade de escrever sobre ele para que outras pessoas leiam e possam decidir, através do que contei a elas, se elas gostariam da experiência de também lê-lo, detenho-me a pensar que não conseguirei me expressar bem e a ideia morre na praia, ao invés de simplesmente escrever e ir resolvendo os problemas que decorrerem da tentativa ao longo do processo, o que devia ser o natural. É assim com qualquer dos inúmeros projetos que me surgem à cabeça diariamente. Ler tantos livros por ano; escrever artigo sobre tal coisa; aprender determinada língua; e assim por diante. Esses projetos são vislumbrados, às vezes chego a fantasiar por algum tempo sobre eles, ver-me realizando-os, mas no momento seguinte eles jazem mortos e enterrados. Not gonna happen. Eles nem chegam a se tornar, na verdade, propriamente projetos, já que nunca deixam a seara da imaginação. Nem sequer uma anotação numa página em branco, para lembrar depois. Para terem a chance de amadurecer. Isto é algo que comecei a tentar mudar hoje, escrevendo ao menos sobre quantas páginas de livro li e que filme assisti ontem, junto a algumas poucas ideias que surgiram no processo. É um começo. Pode nunca passar disso, mas é melhor do que as outras tantas ideias que simplesmente não deixaram um rastro sequer.
Essas coisas já vêm me incomodando há um certo tempo, para não dizer desde sempre, mas isso tem se intensificado desde que iniciei, alguns dias atrás, a leitura de Admirável mundo novo, de Aldous Huxley. Por enquanto, tenho conseguido manter um ritmo diário de no mínimo quarenta páginas de leitura. Estou agora na página 225, tendo lido nos últimos 4 ou 5 dias. Nada mal, eu diria. Ainda me parece muito pouco; gostaria de ler uma quantidade maior de páginas por dia, e de conseguir ler mais de um livro ao mesmo tempo sem perder o foco, sem desistir da leitura de nenhum deles. Ainda assim, é bom ver que me aproximo de finalizar a leitura de um romance inteiro, mesmo que não muito longo, em poucos dias. Faz tempo que não faço isso. Já havia perdido o hábito. Espero que mantendo esse costume eu consiga fazer isso com mais naturalidade, no dia-a-dia. Minha lista de leituras é longa e eu nem posso me permitir ter esperança de ler tudo o que tenho vontade, mas posso fazer muito mais do que tenho feito nos últimos tempos, disso não há dúvidas.

Mas o motivo de eu ter citado o livro de Huxley é pelo seu conteúdo. Tenho pensado muito sobre as ideias de coletividade e individualidade por ele apresentadas. O admirável mundo novo em questão é formado por uma sociedade em que as pessoas são projetadas para pertencer a uma determinada classe e cumprir uma determinada função, sem qualquer chance de modificar sua posição, mesmo que quisessem. Mas mesmo essa vontade tem pouquíssimas chances de existir, já que desde a forma embrionária os indivíduos são condicionados a se sentirem confortáveis apenas em sua casta, sentindo até mesmo repulsa pelos modos de vida das demais. Nesse admirável mundo novo, todas as pessoas são felizes e têm suas necessidades supridas, pois todas elas já estão previstas, não há dúvidas quanto ao futuro, e qualquer mínimo sentimento de angústia ou inadequação é amortecido com doses de soma.
É claro que não haveria livro se não houvesse alguém que desafiasse o status quo. Alguns personagens das castas superiores começam a desviar de seus caminhos predestinados e a ter ideias diferentes, como recusar-se a tomar soma ou desejar maior intimidade em suas relações interpessoais (quando a norma é que "cada um pertence a todos" e os relacionamentos sexuais - dizer "afetivos" seria um exagero - mantidos com apenas um único parceiro por um longo tempo são desencorajados). Começam a aflorar, portanto, individualidades em meio àquela coletividade fabricada. Isso me pôs a pensar. Por um lado, há uma sociedade que funciona maquinalmente, como um relógio, cada peça servindo a uma função, de modo que o todo funcione perfeitamente. As pessoas sentem que são livres e que agem de acordo com a própria vontade, mas mesmo suas vontades lhes foram condicionadas, portanto a liberdade inexiste, existindo somente uma aparência de verdade. De qualquer forma, as pessoas estão satisfeitas e não sentem a necessidade de uma mudança. Tudo vai bem, exceto para as pessoas que, por alguma razão (provavelmente uma falha em sua programação), decidem desviar-se do caminho a si imposto. Essas pessoas começam a demonstrar emoções (especialmente sofrimento, angústia), o que também não é encorajado; aliás, é passível de punição, pelo risco que apresentam de contaminar os outros com suas ideias e dúvidas. A manutenção da homogeneidade é a coisa mais importante para o funcionamento do admirável mundo novo. O lema é COMUNIDADE, IDENTIDADE E ESTABILIDADE.
O indivíduo é descartável se ele não serve à comunidade, se não cumpre sua função determinada, e ele pode ser facilmente substituído, já que um novo indivíduo pode ser produzido com suas mesmas características e habilidades. Portanto, sua vida não tem em si um valor muito alto, e mesmo as pessoas que lhe são próximas e poderiam sofrer a sua ausência não o farão: os comprimidos de soma apagarão a dor que houver, que mesmo assim é pouca, pois as relações nunca são íntimas o suficiente.
A identidade é dada desde a concepção, através de um mecanismo de predestinação. Portanto, ela é fixa, sem nenhuma mobilidade. Não há espaço para dúvidas, autoquestionamento, nem mesmo autoaperfeiçoamento, já que as pessoas são feitas para serem boas naquilo que estão determinadas a fazer, e elas já sabem o que é desde o início, não precisam descobrir.
A estabilidade é garantida pela plena satisfação de todos; e a satisfação é mesmo plena, já que não há possibilidade de alguém desejar aquilo que não pode ter. E o mais importante fator para essa satisfação é que, através do condicionamento, das lições de hipnopedia, cada indivíduo sente que é livre para viver como vive; suas escolhas parecem ter sido tomadas por sua própria vontade.
Assim, a expressão da individualidade é a coisa mais perigosa para a estabilidade de uma sociedade assim arquitetada; o menor desvio pode destruir todo o sistema, portanto qualquer estranheza, mesmo que aparentemente inofensiva, é punida seriamente e é até mesmo considerada herética. Quanto mais penso sobre essas coisas, mais esse mundo me parece não ser uma distopia, senão o próprio jeito como as coisas no mundo de fato são, apesar de ainda nascermos de nossas mães e termos parentes e amigos próximos.
A individualidade sempre foi muito importante para mim. Ter minhas próprias opiniões, manter um pensamento crítico, refletir sobre aquilo que percebo e experiencio e me expressar livre e espontaneamente, inclusive por meio o silêncio, sempre foram atitudes que procurei preservar. De modo que uma comunidade tão artificial, condicionada e predeterminada como a de Admirável Mundo Novo não me é muito atrativa. Ao mesmo tempo, não me parece completamente desprezível a ideia de uma comunidade funcionando como um órgão vivo em que cada indivíduo desempenha sua função de modo que o corpo se mantenha saudável. Uma comunidade em que as inclinações individuais não somente não se opõem, mas convergem para as necessidades do todo. Isso, na verdade, me parece uma ideia bastante bonita.
Desde que, é claro, a liberdade seja plena para que as pessoas sejam como e o que quiserem ser; na verdade, até mesmo sendo isso necessário para que o corpo seja de fato saudável, pois se uma célula abandona a si mesmo pelo bem dos demais, por belo que possa ser considerado o sacrifício (que não deveria ser tão romantizado, aliás), essa célula adoece, e assim o corpo todo sofre. É assim que vejo nossa sociedade. Afetada por um total desequilíbrio, ocasionado pela quase totalidade de suas células doentes, algumas infectadas pelo excesso de egocentrismo, outras por não preservarem nada de/para si.
Penso agora em A alma do homem sob o socialismo, ensaio de Oscar Wilde, e vejo que me refiro precisamente ao espírito do que o autor irlandês defende: uma sociedade que possibilite às pessoas seguirem suas inclinações sem o fardo de pensar em ter de lucrar ou mesmo apenas conseguir sobreviver. Excluídos fatores como esses últimos da equação, torna-se óbvio seguir aquilo que se é, e assim talvez seria possível existir equilíbrio e contentamento sem esforço algum. A competição, a luta pelo próprio espaço, a necessidade de vencer o outro para prosperar, são coisas como essas que dão origem a atitudes egoístas e mesquinhas.
Bem, não que eu pense que não se deve sonhar com um mundo melhor nem lutar por ele, mas lamentar o modo como as coisas são me parece um tanto inútil no momento. Imaginá-las diferentes, no entanto, não, nunca! Só através da imaginação é possível conceber um mundo diferente, mais justo e igual, portanto imaginemos! Mas que possamos também moldá-lo no âmbito material, não apenas em paisagens oníricas.
E aqui, acredito que é um bom começo pensar, sem confundir comunidade com homogeneidade, tanto nas necessidades dos outros quanto nas próprias; e é nisso, penso, que não tenho me saído muito bem. No entanto, vejam bem, questionei-me no início sobre a utilidade das coisas que faço, uma delas sendo a leitura; sem ela, talvez esta reflexão não existiria, quem sabe menos ainda o sentimento que cresce de que a preservação da individualidade não deve sobrepor-se à integração com a comunidade.
O passo é lento, mas é um passo. Como disse alguém que infelizmente conheci no último dia em que o vi antes que partisse de Santa Maria para viver em outra cidade: tarde é tarde, nunca é nunca.

Comentários

jorge disse…
arrume um emprego ou vá estudar permacultura vc parece um bicho grilo (e está tudo bem)
Benaduce disse…
Sobre a tua inquietação com o que faz ser útil ou original, há um minidoc no Youtube, chamado "Tudo é Remix", que tangencia estas questões. Ajuda bastante a não se culpar por pegar alguma coisa aqui e outra ali, mastigar e criar algo novo a partir disso. De certa forma, até a brasilidade dos modernistas de 20 possuía esse espírito.
Já quanto a ler mais do que 40 páginas por dia, aproveita as férias. Em vida normal isso, infelizmente, beira o hercúleo. Agarra cada momento que puder para ler literatura, porque esse é, muitas vezes, o primeiro que acabamos por contingenciar.
Quanto a tua leitura da sociedade, acho muito bacana e compartilho em grande medida com a ideia de que tudo seja um grande organismo. Sempre faço um link dessa noção de coletividade com a teoria de Gaia.
Por último e não menos importante, pelo amor de São Poe, coloca uma quebra de linha a mais depois dos parágrafos. Textão no blogger fica blocado e terrível de ler.
Abraço!
Obrigado pelo comentário, Benaduce! Agradeço também pela indicação do documentário, eu já tinha ouvido falar dele, mas ainda não assisti. O título dele me lembra do Clube da Luta, aliás, um dos filmes que mais gosto.

Sobre a questão do espaçamento entre os parágrafos, eu costumava observar isso em textos mais antigos do blog, quando eu escrevia com uma frequência um pouco maior e divulgava nas redes toda vez que publicava algo. Como agora minha intenção é mais no sentido de usar como uma espécie de desabafo, de tentar sistematizar pelo menos um pouco certos pensamentos que ficam rodando em minha mente, e de guardar esses pensamentos para ruminar depois de um tempo, não tomei, nos textos que escrevi desde o início deste ano, o mesmo cuidado. Mas em consideração ao teu pedido, pela eventualidade de esbarrares novamente por aqui, procurarei em textos futuros fazer conforme indicas (até porque vejo agora que fica difícil mesmo para mim relê-lo nesta formatação atual).

Quanto às leituras, concordo contigo sobre a dificuldade de manter esse ritmo após as férias. Essa meta que estou tentando manter tem justamente uma dupla funcionalidade: a primeira é criar um ritmo de leituras mais constante para treinar minha mente a suportar um tempo maior de concentração durante essa atividade, algo que acredito que pode me ajudar a, se não manter esse ritmo após as férias, pelo menos manter a constância; a segunda é, precisamente, tentar iniciar e finalizar a leitura do máximo de livros de literatura que conseguir durante as férias.

Por fim, não conheço especificamente a teoria de Gaia, mas pelo nome e com relação a leituras prévias, posso imaginar do que se trata. Pesquisarei sobre, pois esse assunto me interessa cada vez mais. Minha espiritualidade tem seguido nesse caminho nos últimos tempos.

Abraço!

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